Eu estava no velório de uma tia, era o segundo velório da minha vida.
No silêncio do velório ouvi um estranho dizer para minha mãe que precisavam de espaço e por isso teriam que retirar os ossos de alguém do local da sepultura.
Retirar alguém da sepultura? Seus ossos?
Fiquei com aquela informação na minha mente e passei a usar meu GPS mental para acompanhar os movimentos da minha mãe.
Atenta na linguagem subliminar do velório, percebi quando o estranho e minha mãe trocaram um olhar, o qual significava que havia chegado a hora.
Percebi que minha mãe manteve guardada aquela informação sobre os ossos do .defunto. Sorrateiramente ela se afastou após a troca de olhar com o estranho.
Eu, da minha parte, sorrateiramente também me afastei e fui ao encalço dos dois, cuidando para não ser pega em virtude de um descuido de movimento.
Fizeram um trajeto pelo cemitério, chegaram a um buraco aberto no chão e começaram a içar um caixão marrom, velho e bem carcomido.
Era o que meus olhos conseguiam avistar da distância que eu estava. Óbvio que o próximo passo seria abrir o caixão.
Quando minha mãe percebeu, eu já estava do lado dela, com os olhos vidrados na cena, minha curiosidade tomou as rédeas da situação.
Eu sabia que era tarde demais para minha mãe me mandar embora ou brigar, senti apenas seu olhar fulminante de recriminação. O estranho também me olhou, mas não deu a mínima.
Dona Etelvina, exerce aquele estilo de mãe autoritária e eu a criança ousada que não perguntava se podia fazer algo, pois sabia que iria ganhar um não, então simplesmente fazia e suportava as consequências quando era descoberta, o que na maioria das vezes não acontecia.
Abriram o caixão.
Havia um esqueleto com uma caveira de cabelos ralos e compridos, os fios grisalhos estavam todos emaranhados. Fiquei petrificada, não sei o que eu imagina ver, mas com certeza era muito distante da realidade que eu estava vivenciando.
O estranho, hábil que era no manejo de defuntos, foi pegando aquele esqueleto e colocando em um saco de lixo preto.
Quem é esse mãe?
Fernando, teu tio.
Não conheci o Fernando , assim como não conheci meus avós paternos nem muitos outros tios e tias. As pessoas morriam cedo há décadas atrás e ficavam esquecidas com o tempo.
O defunto passou a caveira conhecida, a caveira do tio Fernando. Senti o direito de nomeá-la, por uma consideração com o parentesco que tínhamos, afinal ele deixou de ser um parente desconhecido no momento que passou a povoar minha memória.
O tio Fernando me ensinou sobre a finitude do corpo.
Eu não tenho a mínima ideia da imagem que ele tinha quando vivo, é como se tudo tivesse sido enterrado naquele caixão e virado caveira.
Foi assim que eu compreendi , ainda criança , não apenas o que acontece com o corpo das pessoas quando morrem e ficam enterradas por anos e anos, mas também o esquecimento sobre como aquela pessoa era.
O tio Fernando morreu sem deixar rastros de sua imagem no mundo, talvez tenha alguma foto perdida em uma caixa de fotografias antigas de algum parente, mas apenas isso.
Hoje a morte continua nos encontrando, leva nossa vida, mas a imagem continua por aqui girando na rotação do mundo, presa em algum vídeo, foto ou quem sabe até na forma de algum meme .
Antigamente essa imortalidade era reservada para pouquíssimas pessoas. Conseguir permanecer na história do mundo estava associado a realizar algo que fosse grandioso. Como artistas, cientistas, políticos, figuras religiosas entre outros.
Hoje essa possibilidade se estendeu para quase todos os mortais.
Conheço pessoas que já faleceram e suas redes sociais continuam ativas, existem aquelas que ainda recebem postagens dos amigos em alguns momentos.
É possível atualmente, não apenas acessar uma foto, mas dependendo da presença no mundo virtual que essa pessoa construiu poderemos saber como ela pensava, como vivia sua vida ou ainda qual a mensagem que ela compartilhava com o mundo.
Refletir sobre isso não tem o intuito de questionar tais comportamentos, porque eles já estão inseridos em nossas vidas, a dimensão entre virtual e real já está entrelaçada na nossa realidade.
As próximas caveiras, não serão meras caveiras, provavelmente terão uma imagem digital preservada para a posteridade, ou seja, a tão sonhada imortalidade, que muitos humanos almejam, atualmente pode ser encontrada na virtualidade.
O tio Fernando não teve opção de escolha, completou seu ciclo de vida em outra época.
Quanto a você, já pensou sobre isso em algum momento?
Quer sua imagem virtual circulando pelo mundo ou quer ser deletado e colocado na lixeira?
Escrito por: RITA TOLOTTI