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Dia 21/05/2021 19:30

POR QUE APRENDI A ARROMBAR CARROS?

POR QUE APRENDI A ARROMBAR CARROS?
                    

Sim, é verdade, eu aprendi a arrombar carros.

Estava na faixa entre 26 e 30 e poucos anos, não tenho uma recordação precisa da data. Aliás, esta é uma das minhas dificuldades, lembrar o passado através de datas, simplesmente não consigo.

Pode-se dizer que sou daquelas pessoas que perdem coisas.

Eu costumava perder casacos, óculos, carteira, dinheiro, bolsa, cadernos, livros, guarda-chuvas, canetas, enfim, se eu for citar tudo aqui, a lista vai ser enorme.

Perder coisas sempre foi um transtorno na minha vida, um prejuízo de tempo, dinheiro e energia. Na realidade, o problema não era propriamente as perdas e, sim, meus esquecimentos com as coisas do cotidiano.  

Nunca tirei notas baixas, não tinha dificuldades de aprendizagem, muito pelo contrário, aprendia rápido, o que de fato me ajudou muito. Meu problema estava nas coisas práticas da vida e meus esquecimentos vinham acompanhados de muito estresse, cansaço e um estigma de avoada.

Dentre tantas coisas que eu esquecia, tinha uma delas que era realmente um grande transtorno, não apenas para mim, mas também para as pessoas que andavam comigo: esquecer a chave na ignição do carro.

Naquela época, se você fechasse o carro com a chave dentro, ele trancava e a única forma de abrir era com a chave reserva, pelo menos com os carros populares era assim.    

Em uma determinada noite, eu e minha irmã estávamos chegando em uma festa, estacionei o carro, descemos e fechei a porta do carro.

Imaginem quem ficou lá, bem bonitinha na ignição?

-Sim, ela, a chave!

Minha irmã ficou furiosa, diga-se de passagem com toda a razão. 

-De novo esta história da chave! 

Começamos assim uma discussão e no meio da briga uma moto parou do nosso lado. 

Calamos na hora.

Além de ficar na rua ainda ser assaltada! Pensei.

-Esqueceram a chave dentro do carro, gurias? Perguntou o cara da moto.

Fazer o que naquela situação, não tinha como mentir.

-Sim, esquecemos.

-Querem que eu abra para vocês?

E agora dizer sim ou não?

O SIM:  corríamos o risco dele roubar o carro, nossas bolsas, nos raptar ou qualquer coisa do gênero.

O NÃO:  significaria ficar na rua, não entrar na festa e ir buscar a chave reserva, a qual estava com nosso pai a quilômetros de distância e ainda levar uma bronca daquelas. 

Trocamos um olhar e escolhemos o sim, porque irmãs são assim, brigam e no outro momento se entendem apenas com o olhar.

O cara da moto pegou seus apetrechos, que consistia em uma cordinha com um laço.

Enquanto “arrombava”, nos explicava como fazer.

Uma coisa eu digo para vocês, naquele momento usei toda minha atenção para ouvir as instruções, até esqueci que ele poderia ser um assaltante.  

Não demorou 5 minutos e o carro estava aberto.

Na realidade, não era muito complicado, porque os carros da época tinham uns pinos que trancavam as portas. Exigia destreza e habilidade para inserir a cordinha pela porta, passar pela borracha, fazer um laço, encaixar no pino, esticar pelas laterais e puxar de forma precisa.

Quando ele abriu a porta, subiu aquele medo e a incerteza se o sim tinha sido a melhor escolha.

Ele nos olhou.

- Fiquem com a cordinha, gurias, e aproveitem a noite.

Eu usei esta sofisticada técnica muitas outras vezes, na realidade fiquei expert, abria o carro em minutos.  Cheguei inclusive a usar minhas habilidades em outros carros para ajudar pessoas que assim como eu eram esquecidas.

Minha irmã também aprendeu, porque afinal era prejudicada com minha desatenção, apesar de compartilharmos a herança genética e termos sido criadas no mesmo ambiente, ela não apresentava os mesmos problemas que eu. 

Aprender a arrombar carros foi uma estratégia para lidar com uma dificuldade, que é meu TDAH Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade.  Uma estratégia distorcida, porque resolvia a consequência do meu esquecimento e não o problema em si. Resolvia especificamente o problema do carro, mas continuavam todos os outros esquecimentos presentes na minha vida, como por exemplo:   quando estava no trabalho e não lembrava se tinha tirado o ferro de passar roupa da tomada, quando esquecia casacos em qualquer lugar ou ainda quando perdia a carteira com todos os documentos e dinheiro.

No meu caso, a falta de atenção é minha companheira desde que me conheço por gente, um problema que, apesar de causar exaustão e dificuldades diariamente, não fizeram com que eu procurasse algum modo de lidar com a causa dos meus esquecimentos, com minha mente acelerada e minha falta de foco.

Hoje eu sei que minhas dificuldades estão associadas ao TDAH, mas trilhei uma longa trajetória antes de chegar no diagnóstico.

Fiz psicoterapia em várias fases da minha vida e nunca levantaram a hipótese de eu ter TDAH, talvez porque eu tinha uma carreira profissional bem-sucedida, talvez porque eu não trazia essa questão como um problema ou simplesmente porque aprendi a disfarçar muito bem minhas inabilidades.

Fato é que só entendi meu funcionamento quando resolvi fazer transição de carreira e me formei em psicologia. Quando comecei a estudar sobre transtornos do neurodesenvolvimento, cheguei ao TDAH e percebi o quanto esse universo representava um pouco de como eu sou.

Na psicologia encontrei novos desafios em função de minhas dificuldades, como gerenciar minha carreira de forma autônoma com planejamento e execução, trabalhar sozinha e ser responsável pelos meus próprios prazos, ter foco no que de fato é importante e não divagar em milhões de outras atividades e pensamentos.

Foi um processo muito exaustivo, porque neste novo contexto profissional minha mente dispersa me prejudicava nas questões rotineiras. Eu me perdia em uma infinidade de boas ideias sem execução e era invadida por pensamentos de autocrítica.

Compreender os motivos das minhas dificuldades, entender o modo como meu cérebro funciona e buscar auxílio de um profissional foi fundamental para eu aprender a lidar comigo e desenvolver comportamentos mais eficazes.

Obter um diagnóstico neste caso foi importante porque permitiu que eu desenvolvesse estratégias assertivas para minhas dificuldades, aprendi a desenvolver ações de compromisso que auxiliam a ter comportamentos mais eficazes e melhores resultados.

O diagnóstico de TDAH é uma forma eficaz de nos auxiliar a superar dificuldades e não um estigma de inaptidão. Muito pelo contrário, pessoas com TDAH apresentam inúmeras habilidades. Costumam ser criativas, conseguem fazer uma infinidade de coisas diferentes, tem habilidades para esportes e artes, entre tantas outras coisas. 

É importante que o diagnóstico seja realizado por um profissional capacitado mediante uma análise criteriosa. É através desta análise que o tratamento inicial será conduzido, tanto para escolher a medicação adequada quanto o caminho do processo psicoterápico.

O tratamento é sempre individualizado e construído de forma singular, analisando os sintomas, as dificuldades e os potencias de cada pessoa.  As condições sociais e economicas, o ambiente e a cultura também são relevantes para compor o tratamento. 

Eu, depois de compreender muito sobre o meu funcionamento  neuroquímico e comportamental consigo perceber, compreender e usar estratégias para auxiliar minha vida.

- Tarefa fácil? Longe disso, ás vezes é bastante exigente.

Em relação aos meus esquecimentos por exemplo: Será que parei de esquecer coisas?

- Não parei, continuo esquecendo coisas eventualmente.

A diferença é que hoje compreendo meu funcionamento e sei como manejar as situações de forma mais eficaz.

Quanto as chaves na ignição?

Confesso, às vezes ainda esqueço, mas não fico mais na rua, porque afinal só compro um  carro se ele não “trancar” com a chave dentro.  

 

RITA TOLOTTI

Psicóloga Comportamental Contextual