Meu pai foi um fumante, muito antes mesmo de ser meu pai.
Não sei precisamente quando ele começou a fumar, mas foi cedo, muito cedo, talvez um pouco depois dele ter ingressado nas responsabilidades da vida adulta, o que aconteceu aos seus 10 anos.
Quando eu aportei na minha família, ele já tinha seus 38, então, conheci meu pai com o cigarro fazendo parte da extensão do seu braço. Na época minha irmã e meu irmão já eram pré-adolescentes, eu até poderia ter sido o que chamamos de “ a rapa do tacho”, não fosse o fato de 11 anos depois ter nascido minha outra irmã, que ficou com o título, mas está já é outra história.
Dormi toda minha infância no quarto de meus pais, porque os outros dois quartos já eram propriedade de meus irmãos, assim vivenciei as tosses noturnas de meu pai, vivenciei o último cigarro antes de dormir, vivenciei as reclamações da minha mãe, a qual não era fumante.
Guardo até hoje na memória a imagem da carteira de cigarro que ele fumava, Minister, azul e branca. Como tal marca não é mais comercializada, me permiti citar seu nome.
Quando criança eu não tinha uma visão crítica do ato de fumar, mas ouvir as tosses noturnas e posteriormente diurnas, era bastante difícil, não por atrapalharem meu sono, mas sim por ter a percepção dos efeitos que o cigarro fazia na vida de meu pai.
Como eu já disse, não sei quando meu pai deu sua primeira tragada, mas sei que naquele momento quando a primeira dose de Nicotina chegou no seu cérebro, ele, o cérebro, percebeu a presença de uma substância até então desconhecida e iniciou imediatamente o processo de reconhecimento da mesma, pois caso fosse necessário nosso sistema de defesa iria tomar uma atitude contra ela.
Neste momento crucial de tomada de decisão, um receptor que habita nosso cérebro, chamado Nicotínico, seu nome completo é Receptor Colinérgico Nicotínico dos Circuitos de Recompensa, sentiu-se atraído pela Nicotina.
Ele percebeu que ela encaixava-se perfeitamente no seu sítio de ligação, como uma peça de quebra-cabeças ou como uma atração à primeira vista e como toda peça de quebra cabeças quer sua parte que falta ou toda forte atração quer se aproximar do outro, a Nicotina ao invés de ser destruída foi captada pelo Nicotínico.
Quando eles se conectaram, ocorreu uma sensação muito prazerosa, porque naquele momento, foram ativados os sistemas de liberação do neurotransmissor de dopamina, mais especificamente a Via Mesolímbica Dopaminérgica, a qual está relacionada tanto a sensações de prazer como ao circuíto de motivação e recompensa.
Assim, já no primeiro cigarro iniciou-se a relação entre a Nicotina e o Nicotínico ou se você preferir entre meu pai e seu cigarro.
Não sei se o primeiro cigarro do meu pai foi fumado inteiramente, ou compartilhado com algum amigo, mas pense que:
Para consumir um cigarro inteiro são necessárias várias baforadas, o que significa que a Nicotina vai chegando ao cérebro em intervalos de doses e assim gradualmente vai conectando-se aos tantos receptores Nicotínicos presentes no cérebro, preenche um, depois outro e assim sucessivamente, desencadeando sensações prazerosas contínuas.
Quando o cigarro termina, a Nicotina foi consumida e o Nicotínico que está cansado, precisa se recompor, ou seja, precisa de um tempo para voltar ao normal, ao que chamamos seu estado de repouso.
Neste momento nenhuma Nicotina consegue ligar-se a ele, talvez isto explique porque a maioria dos fumantes não consome um cigarro imediatamente após o outro, seria um desperdício, pois as sensações prazerosas não seriam produzidas, pelo ao menos não para um fumante de iniciante a médio, onde o sistema de compulsão ainda não foi acionado.
Depois que o Nicotínico descansar, ele não só irá poder conectar-se novamente à Nicotina, como vai querer muito que isto ocorra, porque afinal a sensação de prazer desencadeada por tal ligação, foi forte, prazerosa, pulsátil, ou seja, mais intensa que os processos naturais de liberação de dopamina e assim o ciclo de repetição do comportamento de fumar se instaura.
Este ciclo vai sendo repetido e o processo de dependência desencadeado. Isto também pode explicar porque existem 20 cigarros em um maço, pois corresponde a um intervalo médio de horas que o Nicotínico tem para querer se conectar com a Nicotina novamente.
Tais reações químicas ocorrem em todas as pessoas que fumam, porém existem fatores genéticos, ambientais, sociais e culturais que irão influenciar no desenvolvimento da dependência do cigarro.
No meu caso por exemplo:
⇒ Não sou fumante, pode-se até dizer que tenho aversão ao cigarro, as tosses noturnas estão presentes na minha memória até hoje, e ajudaram a tornar o ato de fumar aversivo para mim, o que foi reforçado no decorrer dos anos pelo câncer de pulmão que fez que meu pai partisse deste mundo muito cedo.
⇒ Associo cigarro, a perdas, a sofrimento e a doenças, por isso ao saber que alguém das minhas relações fuma, sinto uma imensa tristeza.
Já, com minha irmã mais velha o processo foi outro, ela foi fumante durante muitos anos, o vício do meu pai neste caso teve uma função de reforço positivo, além de outros contextos da sua própria vida.
Cada pessoa tem sua singularidade e o desenvolvimento de uma dependência ou vício exige um olhar amplo, além de uma análise do contexto.
Todo este complexo processo neuroquímico por si só já seria suficiente para explicar a grande dificuldade que os fumantes encontram ao tentar parar de fumar, porém existem ainda outras funções que agravam este contexto, como:
⇒ O fato do cigarro ser uma companhia em momentos de solidão
⇒ Uma máscara para situações de insegurança
⇒ Um auxiliar nos quadros de ansiedade
⇒ Mais tantas outras coisas que só um fumante poderia elucidar
⇒ Talvez neste momento você esteja se perguntando:
- Seu pai conseguiu parar de fumar?
Sim, ele parou, porém antes, chegou a consumir duas carteiras por dia.
Ele parou de fumar quando:
sentiu que seu corpo não tinha mais condições físicas de suportar o cigarro
quando as tosses ficaram incontroláveis
quando percebeu que a vida era mais importante que a morte
Assim, somente através da percepção ou melhor, da conexão com o que de fato era importante para ele, que foi possível encontrar motivação e persistência necessárias para conseguir sair daquela relação de dependência.
Eu acompanhei o processo de parar de fumar do meu pai, no momento que ele disse para si próprio que iria parar nunca mais colocou um cigarro na boca. Foi algo imensamente difícil, mas foi a estratégia mais eficaz que ele poderia ter escolhido.
Podemos compreender tal eficácia avaliando os processos neuroquímicos que ocorreram a partir da suspensão do ato de fumar. Pense que:
Diariamente, o Nicotínico e a Nicotina se encontravam, estavam sempre juntos, já havia uma relação de afinidade e dependência entre eles.
Até que em um determinado dia a Nicotina não apareceu.
O Nicotínico estranhou sua ausência e chamou por ela, chamou inúmeras vezes, mas todas tentativas foram em vão. O desespero se instaurou. Ele gritou, chorou, esperneou, ou seja, suas tentativas ficaram cada vez mais intensas. O Nicotínico utilizou todas as estratégias que dispunha para trazê-la de volta, mas ela não voltou.
Neste contexto meu pai sentia o desespero do Nicotínico, foi difícil não sucumbir as insistências, mas ele resistiu, resistiu porque percebeu que estava doente.
Como nada adiantou, depois de muito, mas muito mesmo tentar, o Nicotínico cansou e desistiu, e assim com muita dificuldade o ato de fumar foi extinto.
A dificuldade de parar de fumar, não necessariamente exige tantos anos de consumo.
A relação de afinidade com a nicotina é tão intensa que mesmo após um mês de uso do cigarro, já pode se instaurar o processo de dependência e consequentemente a dificuldade de interromper seu uso.
Aquela frase que muitos fumantes dizem:
- Eu paro de fumar quando quiser.
Não se iludam porque não é bem assim, pois como vocês viram existem reações neuroquímicas que influenciam o processo do prazer, da motivação e da recompensa, que vão muito além da nossa vontade.
Algumas pessoas nas tentativas de pararem de fumar escolhem fazer uma diminuição gradual do consumo. Caso a estratégia escolhida por meu pai tivesse sido esta, provavelmente ele não teria conseguido parar de fumar de forma tão eficaz.
Vejamos porque:
Ao perceber a ausência da Nicotína, o Nicotínico fica nervoso e inicia seu escarcéu de chamar, gritar, chorar, espernear, até que em algum momento aleatório ela simplesmente aparece.
Neste caso ele aprende que suas tentativas de trazer novamente para junto de si a Nicotina são eficazes e assim reforçamos o comportamento de insistir do Nicotínico, ou seja, ao invés de fazer com que ele desista, induzimos o Nicotínico a ser mais perseverante nas tentativas de obter o prazer que a nicotina oferece.
Neste processo de diminuição gradual, em algum momento podemos ficar mais vulneráveis devido a questões da vida, e como o cigarro continua por perto, é muito mais fácil que os padrões antigos do hábito de fumar retornem.
As memórias desta relação tão íntima com o cigarro ficam armazenadas na mente de todo ex-fumante para o resto de sua vida, sendo a mesma acionada quando se depara com um contexto semelhante, seja um cafézinho, estar em um ambiente com fumantes ou mesmo algum sentimento, como por exemplo a ansiedade.
Alguns ex-fumantes relatam ter desenvolvido aversão pelo cigarro, outros porém falam que mesmo depois de anos ainda sentem vontade em muitos momentos.
O fato é que sim, parar de fumar é um processo extremamente exigente e só é possível conseguir quando existe um valor associado a ele, ou seja, algo muito mais importante do que fumar. No caso do meu pai isto só ocorreu quando ele percebeu a doença na sua forma física, apenas saber que o cigarro era prejudicial não foi por si só uma motivação suficiente para interromper o vício.
Um outro exemplo eficaz são as mulheres que ao engravidarem conseguem parar de fumar, neste contexto ser mãe e cuidar do seu filho consiste em uma motivação suficientemente forte para interromper o uso, muitas não retornam o hábito, por entenderem serem exemplo para seus filhos, por autocuidado, outras já não resistem e após o momento de amamentação voltam aos padrões antigos .
O fato é que: o cigarro apesar de lícito é extremamente nocivo e a melhor forma de evitar é nunca experimentar.
Eu entendo o contexto da vida de meu pai, que o levou a sua dependência, porém se sua escolha tivesse sido outra, talvez hoje ele teria conhecido seus netos e bisnetos e eu não precisaria ter apresentado meu pai por foto, para meu sobrinho, o qual queria muito ter conhecido o avô.
Escrito por: RITA TOLOTTI