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Dia 21/05/2021 19:42

QUANDO PAREI DE USAR TRANÇAS

QUANDO PAREI DE USAR TRANÇAS
                    

Aquele café tinha gosto de infância, o momento era de tristeza, a cozinha era a mesma de 50 anos atrás, salvo alguns eletrodomésticos que foram adquiridos com a modernidade.

Estávamos ali, eu e minha irmã, em silêncio. A tristeza também estava, mas aliás,  ela não veio sozinha, trouxe consigo a intimidade, e as duas  juntas trouxeram  também uma infinita beleza ao momento. Desviei meu olhar para a sala e me deparei com um abraço, aqueles abraços que transformam um minuto de uma vida. Minha mãe nos seus 84 anos ficava pequena nos braços da minha filha.

Minha mãe aprendeu a abraçar.  Pensei.

Agora, se você está imaginando minha mãe, como uma velhinha frágil de cabelos brancos, não é o caso. Imagine uma senhora, com seus cabelos castanhos e curtos, rosto marcado por algumas rugas, mas nem tantas para a idade, uma pessoa ágil , forte e de uma fé invejável. Quanto ao conhecimento, este ela não  teve  oportunidade de aprender  na escola, mas  aprendeu a aprender com a vida.

Minha mãe, dela eu tenho a cor dos cabelos, os olhos castanhos e também sua determinação.

Quando eu era criança não recebia aquele abraço que presenciei  hoje, porque naquela época minha mãe não tinha aprendido a abraçar,  o amor vinha vestido de cuidado.

Nas minhas lembranças de infância, nossos momentos de carinho eram quando ela penteava meus cabelos, o que acontecia quase todos os dias,  algumas vezes ela fazia tranças, que eu adorava.  

Meus cabelos são muito lisos e isto vem da parte do meu pai. Um homem alto, olhos azuis, cabelos loiros e muito lisos, cabelos estes que ele preservou durante toda a vida, sempre na altura das orelhas, fios compridos, longos e retos, jogados para trás, mesmo depois de um câncer seus cabelos retornaram, brancos , mas com igual vitalidade.   

Lembro  do meu pai,  penteando seus cabelos pela manhã antes de ir trabalhar e eu sentada em cima do vaso da patente acompanhando a cena.

Minha irmã mais velha tem do meu pai os olhos claros e os cabelos crespos de minha mãe, para ela cabelo sempre foi um problema e talvez ainda seja até hoje nos seus 64 anos.  

Minha irmã dormia quase sempre de touca, touca não de colocar na cabeça. Touca  é uma coisa que as mulheres que queriam ter cabelos lisos faziam com o cabelo,  porque naquela época, chapinha não existia nem mesmo em sonhos.

Elas, as mulheres,  enrolavam o cabelo em volta da cabeça e colocavam muitos grampos acrescidos de um lenço, e assim iam dormir, para no outro dia os cabelos estarem lisos.  Ás vezes, ainda viravam a tal da touca,  o que consistia em fazer tudo de novo para o outro lado.  Eu nunca entendia muito para que tudo aquilo.

Um dia minha irmã foi incumbida de uma  missão, a de me levar ao cabeleireiro para cortar a franja. Eu nos meus 10 anos e minha irmã nos seus 23.  

Meus cabelos estavam pelo meio das costas e eu sempre usei franjinha, então para mim era tranquilo ir cortar a franja.   Assim, sentei faceira na cadeira alta da cabelereira.  Sua imagem vem nítida na minha memória, uma mulher de meia idade, cabelos curtos ondulados, com um avental branco que encobria sua enorme barriga, com um semblante alegre.   

Conforme me mandaram, fechei os olhos, e assim de olhos fechados percebi.  Ela, a cabelereira, pegou meus cabelos com as mãos  e clique, senti  o fechar da tesoura. Digo sentir, porque foi exatamente isto, eu simplesmente senti.   

Abri meus olhos, fiquei muda, de minha boca não saiu nem mesmo um breve suspiro, uma parte do meu cabelo já estava no chão, eu podia ver minha orelha através do espelho.  Assim,  ela continuou mais um incessante números de cliques, cada um doía em uma parte do meu corpo, e assim muda e calada, fui para casa com os cabelos mais curtos do que qualquer menino da minha sala de aula.

Meus cabelos voltaram para casa, um tempo depois, em forma de uma imensa peruca, para cobrir os cabelos crespos de minha irmã. A peruca não ficou bem lisinha, porque claro, meu cabelo não foi suficiente para fazer toda a peruca, então, ela  a peruca  tinha alguns fios levemente ondulados.  

Apenas quando olhei a peruca que entendi porque minha irmã tinha cortado meus cabelos, mas não compreendi e talvez ainda hoje não o consiga.

Eu, na forma de Joãozinho, porque este era o nome do corte masculino popular da época, e também o apelido que passei a ter na escola, presenciava minha irmã colocar a peruca e sair para passear.

Talvez você esteja se perguntando, o que eu fiz? Por que não reagi?

Sim,  eu chorei, sim eu não queria mais sair na rua,   mas  sim, eu  também  aceitei a impotência perante a situação.

Eu poderia ter picotado a peruca, poderia ter jogado tinta nos cabelos de minha irmã enquanto ela dormia, poderia ter rasgado suas roupas favoritas,  ou ter feito qualquer outra coisa, mas não tive nenhuma vontade de revidar aquela situação. Aqueles sentimentos foram tão profundos que eu mesmo nos meus 10 anos, decidi guardá-los comigo, e talvez até hoje, eu ainda guarde comigo meus sentimentos mais profundos.

Hoje percebo que minha irmã naquele momento não cortou apenas meus cabelos, ela tirou de mim também o momento de carinho com minha mãe, porque na forma de Joãozinho, não havia mais necessidade que minha mãe penteasse meus cabelos,  e eu, desde então,  nunca mais me permiti usar tranças. 

Compreendo  também  o quanto minha irmã não teve a dimensão de suas atitudes, como também não o teve em muitas outras situações de sua vida. 

Cabelo cresce, e os meus cresceram também,  e assim como os cabelos se renovam as relações também podem ser reconstruídas, e hoje naquele momento de tristeza, estávamos lá tomando café com sabor de infância, eu e minha irmã.

Quanto a  história dos cabelos?

Ela faz parte eventualmente das brincadeiras ácidas e divertidas dos almoços de domingo.

RITA TOLOTTI